Família

Casa de vó

17:03


Poderia ser uma casa igual a cem mil outras. A base é a mesma: tijolo, concreto e tinta. As paredes mudaram de cor muitas vezes. O telhado também mudou. Novos cômodos nasceram.

Mas, antes disso tudo, a casa era rosa. O chão era vermelho em alguns lugares e verdes em outros. Na frente da casa, tinha uma área que, para mim, no auge da primeira década de vida, era o mundo inteiro. Aliás, criei muitos mundos ali.

Na parede da porta do quarto que eu dividia com mais três, um monte de tracinhos registraram, ano após ano, nossas alturas aumentando.

Às vezes, o chão era gelado. Outras vezes, a sala era muito quente. Foi em uma mesa redonda de madeira naquele ambiente, inclusive, que escrevi minhas primeiras histórias. E, naquela casa, vivi muitas outras.

Foi ali que me apresentaram pessoas que vinham de longe, de lugares que eu só ouvia falar. E era ali que eu esperava minha mãe chegar para contar outras histórias. Foi ali que vi, pela primeira vez, alguém que disseram ser meu irmão. Foi ali, também, que entendi o que isso significava.

Só agora percebo o quanto aquele lugar faz parte de quem eu sou. Como se eu fosse sangue e oxigênio, mas também tijolo e tinta.

Por fora, pode parecer uma casa como outra qualquer.

Por dentro, é coração.

Cotidiano

O homem das balas de gengibre

16:25


Existiu, certa vez, um homem que queria explodir um prédio com balas de gengibre. Seu problema? A forma como a prova da OAB funciona. Pelo visto, este sistema o afetou profundamente, assim como a Joana, que jurava ter passado em medicina e frequentava todas as aulas fielmente, ainda que seu nome não constasse em lugar nenhum.

Acordo às 4:47 da manhã e lembro-me do homem que, no dia anterior, estava no mesmo ônibus que eu. Entrou pelas portas traseiras, falando inglês. “Ladies and gentlemen, good night!”. E então anunciou que estava vendendo balas de gengibre. Era um vendedor qualquer, em um dia qualquer, entrando em um ônibus qualquer. Só percebi que se tratava do tal homem da bomba de gengibre minutos depois, quando passamos por um outdoor e ele começou a criticar a não-validade de seu diploma na cidade do desemprego (palavras suas), motivo pelo qual tinha que vender balas.

E então começou a apresentar seus argumentos quanto à injustiça da tal prova. Usou como exemplo a questão 43 da 15ª edição do exame da ordem. “Um absurdo! A gente aprende uma coisa na faculdade e aí eles dizem que é outra”. E então se apresentou de forma indireta, fazendo com que vários passageiros se virassem para olhá-lo, reconhecendo-o: “aí quando o cara vai lá, dizem ‘ah, mas é bala de gengibre’”.

Domingo tem prova da OAB e ele ameaçou: “não passem na Paralela”.

Quando ele desceu, abri o Google para ter certeza que era o mesmo cara. Tentei fixar sua fisionomia na memória sem encarar muito. E era. Seu nome, descobri, é Frank.

Frank quase passou despercebido, como todos os dias e tantos outros.

Nem sequer vendeu uma bala.

amor

Ar-condicionado

16:29



O ar-condicionado parou. Eu não havia percebido que havia um ar-condicionado. Mas ele parou. Então percebi. Porque tudo mudou a partir de então. O ruído sumiu. O silêncio apareceu. O suor chegou às mãos. O ar-condicionado parou. Queria eu tê-lo percebido antes e aproveitado. Mas não percebi e agora é tarde. Assim também foi com você que, apenas agora, ao dobrar a esquina, percebo que se foi.

Entre Sujeitos e Verbos

Recomeçar

08:00


Criei o Entre Sujeitos e Verbos em 2012. Mais precisamente em 3 de agosto, dia em que é comemorado o fim da censura no Brasil. O objetivo não era grande: escrever o que me desse na telha. Já tinha tido outros blogs e sentia falta de transformar o que sentia em palavras. O resultado eram milhares de cadernos e notas inacabadas no celular. Então criei o ESV para reunir tudo isso.

Escrever neste blog me trouxe muitas experiências boas. Lembro de diversas delas com uma sensação de bem-estar que não sei descrever. Até que a rotina (sempre ela) me impediu de escrever, de publicar, de dar atenção. Entrei para a faculdade. Jornalismo. Retomei o blog, afinal, jornalistas e blogs têm tudo a ver. Mas aí a falta de tempo e a sensação de que errar aqui poderia arruinar minha futura carreira me afastaram desse mundo que eu tanto gostava (ah, o ego!).

Das vezes que tentei voltar, sempre achava que não estava perfeito e que alguém veria e eu não podia errar etc etc. A verdade é que nunca ouvi alguém reclamar de fato (será que alguém se importava mesmo?). No fim das contas, muitas vezes nós mesmos somos a nossa própria censura.

Quantas vezes você deixou de fazer algo porque achava que alguém diria alguma coisa? Quantas coisas você deixou para trás ou nem mesmo começou?

Re(comece)...

Nos últimos meses, entretanto, insatisfeita com alguns aspectos da vida, resolvi mergulhar em leituras sobre autoconhecimento e repensar minhas ações. E a vontade de conseguir tempo para escrever voltou com força. Além de planejar com cuidado e enxergar meus sonhos como algo possível, já que minha ansiosa geração acredita que já deveria ter a vida perfeita aos 20 (e aqui cabem muitas definições de vida perfeita. O que seria a vida perfeita para você?).

Enfim... Resolvi recomeçar o Entre Sujeitos e Verbos por um motivo: não deixar que este projeto que tanto aprecio terminasse de vez no limbo dos blogs arquivados, sendo substituído por outro. O nome ainda me serve. O jeito só precisa mudar um pouco, mas continua com a essência que sempre teve. Ou não.

... sem medo

Eu ia voltar com o blog do zero e os posts antigos não seriam mais vistos, mas achei que seria cruel fingir que nada antes disso existiu. Então abro as difíceis portas atrás das quais escondi minhas ainda primárias aventuras pelo mundo da escrita (e ainda não são?) e deixo que vocês vejam o antes, o agora e o daqui em diante. Tudo serviu para que eu chegasse aqui hoje. Não que eu tenha alcançado o topo do mundo, não me entenda errado. Mas tudo que escrevi faz parte do que escrevo hoje. E, por mais difícil que possa ser, vou tentar compreender toda essa complexidade e passarei a olhar meus escritos com ainda mais cuidado e sem medo de expô-los por aí.

Então recomeço. Com tudo o que fui e aberta ao que posso ser.

E isso significa compreender que este espaço ainda pode mudar muito, junto comigo, como tem sido até aqui.

Vamos juntos?

Anos 1 a 4

O truque de mágica de Buster Keaton

11:17

Este post foi escrito por Bardo quando colaborador do Entre Sujeitos e Verbos



O cinema mudo e preto e branco é comumente encarado de forma preconceituosa pelo público em geral. No entanto, como o valor do tesouro geralmente é avaliado por sua antiguidade, esses supostos decréscimos técnicos não influem na qualidade da produção, por vezes enriquecendo-a. A comédia foi um gênero bastante comum dentre as produções americanas. Podemos dizer que um dos grandes expoentes do berço do cinema foi Buster Keaton.


A comédia corporal é deliciosamente explorada pelo cineasta e ator. Mas ainda que gênio da comédia, seu primor e maior habilidade está na edição de filme. Aqui chamaremos a atenção para uma de suas produções mais proeminentes: Sherlock Jr, de 1924. Um projetista e faxineiro de um cinema pede em casamento uma garota. Seu rival, porém, o incrimina por roubar a corrente do relógio do pai da moça. O jovem projetista, aspirante a detetive, sente-se decepcionado. Ao ir trabalhar dorme em meio à projeção de um filme, e sonha que a película projetada é sobre a história dele como Sherlock Jr - o segundo melhor detetive só mundo, que desvendada o caso do roubo da corrente. Observe o filme abaixo, essencialmente o minuto 16. Observe os cortes da notória edição.



Utilizando apenas de edição - na época uma tesoura literal bastava - Buster Keaton faz uma das melhores cenas da época: sua figura permanece, cômica, fixada em tela como uma imagem inconsciente de ser apenas uma projeção, contínua na película, perpassando diversos e variados cenários em movimentos corporais hilariantes, enquanto incólume permanece a assistência, como indiferentes para a cena. Uma magia digníssima de aplausos.

Este post foi escrito por Bardo quando colaborador do Entre Sujeitos e Verbos